90 anos de ‘C… Que Sabe’: Uma história viva no Bixiga
Em 5 de setembro de 1931 começava uma das mais lindas histórias do bairro
A Cantina ‘C… Que Sabe’ completa neste domingo, 5 de setembro, 90 anos de existência, em uma história que representa a migração italiana em São Paulo e que se mantém viva até os dias atuais através da tradição no preparo das receitas trazidas pela família Stippe ao Brasil. No enredo desses 90 anos, muitos personagens. A Cantina viu nascer o teatro moderno, aproximou-se da classe teatral, da boemia e contou sempre com mãos de migrantes nordestinos em sua jornada. Nesses 90 anos de ‘C… Que Sabe’, o chef Bruno Stippe, proprietário da casa, conta toda uma história de Bixiga.
Começo dos anos 1900
Francesco Stippe chega ao Brasil e vai trabalhar para o Conde Matarazzo. Já chegou arrumando confusão, visto que logo em sua primeira refeição discutiu com o cozinheiro que preparava a comida dos funcionários. Em seu protesto, Francesco dizia que aquela comida não se fazia nem para cachorro. “Na Itália a gente passa fome. Você tem que respeitar a comida”, dizia Francesco, que ouviu de um cozinheiro irritado que ele então deveria preparar a comida. E assim o avô Stippe fez, agradando a todos, de forma que a fama da boa comida chegou ao Conde, que o chamou para cozinhar cozinhar diretamente para os Matarazzo.
A família Stippe morava na Rua Rui Barbosa, onde hoje é o estacionamento da Cantina. Para aumentar a renda, Dona Rosa, esposa de Francesco, começou a fazer comida e vender para os italianos que chegavam ao Brasil. Muitos vinham sozinhos, sem esposas, moravam nas pensões do bairro e se alimentavam na casa de Dona Rosa. Com a fama de comida boa, o fluxo de clientes aumentou e nascia assim o restaurante Mamma Rosa, mãe do ‘C.. Que Sabe’, em uma história que começou em 5 de setembro de 1931 e agora completa seus 90 anos.
Francesco se consolidava como personal chef dos Matarazzo, porém, quando o Conde descobriu um câncer, começou a orientá-lo a abrir o próprio restaurante. O Conde morre em 1939 e em 1940 Francesco segue seu conselho e oficializa a abertura do restaurante. Seu irmão veio então da Itália para ajudar nos negócios, de forma que eles resolveram mudar para a casa onde hoje é o atual ‘C.. Que Sabe’. O restaurante passou a se chamar Pepperoni. O tio italiano porém, se envolveu com muitas mulheres, teve muitos filhos, curtiu muito a vida e… morreu, deixando o restaurante lotado de possíveis herdeiros.
É ai que entra Roberto Stippe, pai do chef Bruno, e um dos personagens mais emblemáticos que o Bixiga já teve. Roberto nessa época já era proprietário de outros restaurantes na cidade e fez um acordo com um juiz. Pagou em valores acima do mercado pela parte de possíveis herdeiros de seu tio e passou a ser o único dono do local. Para fazer esse negócio ele teve que vender um restaurante que possuía no começo da Brigadeiro Luis Antônio para o Grupo Sérgio. No contrato, porém, uma cláusula o impedia de abrir um restaurante italiano no centro da cidade por 2 anos, de forma que não houvesse concorrência. A moda na época era restaurante internacional. Todos os grandes restaurantes como Giggeto, Fassano, Caddoro, Terraço Itália trabalhavam com essa linha.
Nasce então o restaurante internacional ‘C… Que Sabe’, onde as fotos dos artistas na parede compunham a decoração e a boa comida era o ponto alto. O nome surgiu de uma conversa entre Roberto e sua esposa. Perguntada por ele onde o casal almoçaria, e ela responde “Cê que sabe”, frase que fez o pai de Bruno decidir que esse seria o nome do restaurante dali para a frente. A casa, durante muito tempo, foi reduto de artistas, com shows de dança, música. “Manteve a cozinha italiana tradicional dos meus avós e incrementou com cozinha internacional. E foi a primeira casa a colocar nome de artista nos pratos”, conta Bruno Stippe.
Roberto Stippe foi também o pioneiro na apresentação de programas culinários na televisão brasileira, como “O Machão e a Frigideira” e “Pilotando o Fogão”, fez mais de 700 comerciais, e como chef ganhou diversos prêmios, entre eles o bicampeonato do festival “Os Spaghetti de São Paulo”.
Faleceu em 2009 com apenas 64 anos de idade. “Ele amava o Bixiga”, diz chef Bruno.
“Comecei a trabalhar na cozinha do ‘C… Que Sabe’ aos 12 anos”, conta o chef Bruno, professor de gastronomia que já deu aula em 23 países e é Presidente da Federação Italiana de Chefes de Cozinha do Brasil e supervisor para a América Latina. Ele, que em 2010 ganhou medalha de Mérito das missões de paz da ONU, é responsável pelo restaurante de sua família continuar oferecendo para São Paulo o que há de melhor e de mais tradicional na gastronomia italiana.
A terceira geração da família Stippe comemora os 90 anos da casa de portas abertas, mas não sem sofrerem com os efeitos da pandemia provocada pelo coronavírus. “Tivemos que vender imóveis, bens, usamos todos os recursos para pagar os funcionários e os músicos nesse período em que tivemos que ficar de portas fechadas. Valeu à pena, porque o ‘C… Que Sabe’ é a minha vida, o Bixiga é minha historia, minha raiz”, explica Bruno, complementando que não poderia simplesmente demitir as pessoas que todos os dias ajudam a manter o tradicional restaurante em funcionamento. “Essas pessoas também são a história”.
Bruno conta que os italianos que vieram para o Bixiga foram os rebeldes, que não aceitaram as péssimas condições oferecidas aos imigrantes nas fazendas. Assim como os negros, que não aceitavam ser escravizados e fugiam para o bairro, e que os nordestinos foram exatamente o que os italianos foram no passado, gente sofrida que chegava a São Paulo querendo trabalhar.
Uma vez, numa brincadeira entre ele, seu primo e o Miguelão (um funcionário vindo da Bahia), seu primo acabou xingando o Miguelão de “baiano” porque este teria lhe colocado uma pedra de gelo em sua calças. Seu avô, Sr. Francesco, ouviu e deu um tapa no neto dizendo “Nunca mais você xinga um nordestino. Nordestino hoje fui eu ontem aqui. Os cortiços que eles moram fui eu que morei ontem, então você nunca mais desrespeita a mão de obra que põe comida na mesa do Paulista hoje, aprenda a respeitar as pessoas”.
O chef conta que cresceu vendo um Bixiga que unia todo mundo e onde sempre houve lugar para todos, sendo um bairro que sempre tratou muito bem as pessoas, mas que nem sempre é bem tratado pela cidade. “Bixiga é berço da arte, do samba, do rock, lugar que nunca teve segregação”, diz ele.
“Bixiga é lugar de amor e de união de todas as pessoas. Quem está aqui tem que respeitar, quem nasce no bairro tem que respeitar, quem está afim de ficar no bairro tem que respeitar a história, tem que respeitar a tradição. Esse bairro em qualquer lugar do mundo seria ponto turístico. Aqui é um lugar lindo, de fácil acesso para todos. Quando fecha um restaurante no Bixiga eu fico triste, aqui todas as comidas são bem-vindas. As pessoas que aqui vivem, que tem comércio, que visitam tem que aprender a respeitar esse bairro. Nossa história merece respeito”.